ARTIGOS


A Natureza e a Paisagem, o olhar e o lembrar.

Autor: Anderson Marinho da Silva

Artigo apresentado ao Mestrado em Artes Visuais, Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, para avaliação parcial da disciplina Teoria das Artes. Sob a orientação do Prof. Eriel Araújo.


 Resumo: Este artigo se propõe a trazer algumas reflexões sobre a natureza, a paisagem e a sua representação. Procuramos com isso, entender como os teóricos contemporâneos abordam a questão da representação da natureza e o que eles entendem como pintura de paisagem. Acreditamos que a singularidade de cada olhar, interfere na apreensão da imagem, ou melhor, do espaço vivido e a nossa motivação é a questão da representação na obra de Arte.
Palavras Chaves: natureza, paisagem e representação. 

Segundo o dicionário, a palavra natureza é utilizada para designar o conjunto de coisas que existem realmente: mundo físico; e a condição própria: essência dos seres e conjunto de caracteres particulares, de disposições que distinguem um indivíduo. Pensando na primeira designação, e trazendo para o universo das artes, o que seria então, a representação da natureza, ou melhor, a pintura de paisagem?

[...] o conceito de paisagem não é universal, isto é, não se fez presente em todas as sociedades humanas. Apenas em determinados tempos e espaços ele serviu como um constructo e uma forma de representação para dar conta das relações entre homem e meio ambiente. Ainda que a interpretação sobre a especificidade européia tenha sido reavaliada por aqueles que apontaram a existência de outras “civilizações paisagísticas” ao longo da história, os pesquisadores concordam a respeito do peso que o conceito e a prática adquiriram na Europa e em seus prolongamentos ultramarinos a partir do século XVII. (MARQUESE 2007, p.57)
Sob a representação da natureza, RIGOTE (2009, p. 65) define, etimologicamente, o termo “representação” (latim “representare” – fazer presente ou apresentar de novo) e suas concepções e sentidos empregados ao longo da história. A “crise da representação” (sua concepção clássica e racional), para o autor (2009, p. 66) “encontra-se estreitamente ligada à da idéia de real ou realidade como referente extra-discursivo”, pois, é “o realismo” como pressuposto filosóficos que está em questão nas críticas à representação”.
SCHWARCZ (2008, p.57) nos conta que na França do final do Século XVIII, uma Conferência realizada na Academia Real cunhou ao termo natureza a seguinte definição: “princípio geral e permanente dos objetos visíveis, não desfigurado por acidentes ou por doenças; não modificada pela moda ou hábitos locais”. Segundo a autora a natureza seria uma ideia coletiva “essência existente em cada individuo”. [...] por natureza, entendemos o nexo infinito das coisas, a ininterrupta parturição e aniquilação das formas, a unidade onde ante do acontecer, que se expressa na continuidade da existência espacial e temporal [...] SIMMEL (1913 p.5)
Belluzzo (1994, p.125) atentando para a noção de natureza, comenta  que é preciso guardar as devidas reservas a respeito do tema. A artista cita Argan:

“o pensamento iluminista não entende a natureza como uma forma dada e imutável que se pode somente imitar ou representar: a natureza a que os homens percebem com os sentidos, interpretam com o intelecto, mudam com o agir (...) já é uma representação mental, que tem na mente todos os seus possíveis desenvolvimentos”. (ARGAN 1970, p.9)
Já sobre a paisagem, o Geógrafo Milton Santos (2008. P.103) nós dá a seguinte definição: a paisagem é o conjunto de forma que, num dado momento, exprimem as heranças que representam as sucessivas relações localizadas entre homem e natureza. O autor apresenta distinções entre paisagem e espaço. Para ele a paisagem “é apenas a posição da configuração territorial que é possível abarcar com a visão”.
Se pensarmos que a nossa interpretação da natureza depende do grau de conhecimento que nós incorporamos sobre cada um dos elementos que a compõe, segundo o que a fenomenologia prega, então, será que o ideário coletivo deixaria de existir, pois, cada um teria uma interpretação do visível?

Ela [...] existe através de suas formas, criadas em momentos históricos diferentes, porém coexistindo no momento atual. No espaço, as formas de que se compõe a paisagem preenchem, no momento atual, uma função atual, como resposta às necessidades atuais da sociedade [...] SANTOS (2008, P.103)
SIMMEL (1913 p.5) nos informa que a paisagem deve ser absorvida, usufruída através da consciência para além dos elementos contemplados. [...] algo uno, não ligado às suas significações particulares nem delas mecanicamente compostos [...] para SIMMEL (1913 p.7) tudo que percebemos ao olhar a natureza, ainda não é a paisagem, somente quando um “certo conceito unificador” os abarca é que se torna paisagem.
SANTOS (1993, p.107) tentando formar uma imagem que demonstre os seus conceitos sobre o que é espaço e paisagem escreveu que [...] durante a Guerra Fria, “os laboratórios do Pentágono, chegaram a cogitar da produção de um engenho, a bomba de neutros, capaz de aniquilar a vida humana em uma dada área, contudo, preservariam todas as construções”. Segundo o autor o que resultaria dessa explosão continuaria a ser paisagem, mas não seria espaço. O espaço [...] resulta de intrusão da sociedade nessas forma-objeto
Aqui mais uma questão aparece. A forma de absorver os elementos da natureza é tão variada entre nós que os pontos de vistas e as formas dessa impressão também o serão? E mais, se essa paisagem for uma ilusão criada por sucessivas pinceladas de tintas, uma pintura, como deve ser entendida?
DELEUSE (1996, p.156) explicando o diagrama de Frances Bacon nos explica que: parte-se de uma forma figurativa, um diagrama intervém para borra-la, e dele deve surgir uma forma, de natureza inteiramente diferente, chamada figura.
ALMANDRADE (2008, p.12) citando Merleau Ponty nos diz que “não temos outra maneira de saber o que é um quadro ou coisa senão olhá-los, e a significações deles só se revela se nós os olharmos de certo ponto de vista, de uma certa distância e um certo sentido”.

[...] mais não se há de negar que a paisagem só surge quando a vida pulsando na intuição e no sentimento é em geral arrancada à unicidade da natureza e o produto particular assim criado, transferido para um estrato inteiramente novo [...] acolhendo o ilimitado nos seus limites inviolados. SIMMEL (1914, p.8)
Ao escolhermos um pedaço do mundo visível, um ponto de vista, será que escolhemos por acaso? E o que desenvolvemos a partir dessa paisagem, essa figuração permanece paisagem. Sobre a figuração DELEUSE (2004, p.17) comentou que “a pintura antiga estava condicionada por determinadas possibilidades religiosas que davam sentido a figuração, enquanto que na pintura moderna é um jogo ateu”. O autor continua [...] Não se pode dizer que o sentimento religioso sustentava a figuração na pintura antiga, pelo contrário, ele tornava possível uma libertação das figuras, um surgimento das figuras fora de qualquer figuração.
Então será que a questão da figuração na arte dita moderna poderia ser uma espécie de sensação? DELEUSE (2004, p.43) diz que a sensação é o que é pintado [...] é o que transmite diretamente, evitando o desvio ou o tédio de uma história a ser contada.
Para SIMMEL (1913 p.6) [...] um pedaço de natureza é, em rigor, uma contradição em si; a natureza não tem frações; é a unidade de um todo, e no momento em que dela algo se aparta deixará inteiramente de ser natureza [...]

[...] é fundamental ir do conceito ao objeto e do objeto ao conceito. Uma obra de arte é tudo que lá contém: forma, cor linha, volume, textura, gesto, conceito, idéia. Ela constrói um campo visual que solicita do olhar o exercício do conhecimento e da imaginação. ALMANDRADE (2008, p.13)
Que a parte de um todo se torne outro todo independente, que dele se emancipe, frente ao mesmo, reivindique um direito próprio. SIMMEL (1913 p. 7). Do mesmo modo que o homem procurou ser um todo consciente, o recorte da natureza também se emancipou.
Como trabalhar esse pensamento, sabendo-se que para pintura, necessitamos logo de imediato, limitar nosso olhar e recortar.
SIMMEL (1913, p.6) explica que “ver como paisagem uma parcela de chão com o que ele comporta significa, então, por seu turno, considerar um excerto da natureza como unidade – o que se afasta inteiramente do conceito de natureza”. Mas se a paisagem não é natureza, o que seria então. O autor continua:

“A natureza, que no seu ser e no seu sentido profundo nada sabe das individualidades, graças ao olhar humano que divide e das partes constitui unidades particulares, é organizada para ser a individualidade respectiva que apelidamos de paisagem”.
Para SIMMEL durante toda a antiguidade e a idade média, não existia nenhum sentimento de paisagem como “decisão psíquica”.

A individualização das formas interiores e exteriores da existência, a dissolução dos liames e dos vínculos originais em entidades autônomas diferenciadas – esta grande formula do mundo pós-medieval é que permitiu, também, ver a paisagem como ressaindo da natureza. SIMMEL (1913 p.7).
A partir do renascimento e principalmente na arte dos países nórdicos do Barroco, a natureza e sua representação inicia uma jornada que, segundo percebemos, ainda não foi resolvida, e mesmo que os objetivos da arte tenham mudado, a questão da paisagem, ainda é tema para o desenvolvimento do pensamento artístico. Não mais uma paisagem construída pela reunião de elementos naturais e sim enquanto espaço que nos cerca.
Segundo BELUZZO (1994 p.11) “a visão pitoresca, marcada pelo primado dos valores pictóricos sobre a natureza observada, vigorou na Inglaterra, durante o setecentos e os primeiros trinta anos do século seguinte”. A autora continua [...] não se pode subestimar o poder do olhar dirigido ao mundo com o qual não se esta familiarizado. É preciso reconhecer, nos termos dessa relação entre sujeito e universo, que lhe é estranho, a ausência de rede de significação impostas pela cultura, pela utilidade, pelo aprendizado [...].
Para BELUZZO (1994 p.19) [...] A paisagem pitoresca [...] concorre para justa compreensão de que toda paisagem decorre de um encontro entre o que é dado a ver e o que a cultura legitima no que é visto [...] ALMANDRADE (2008, p.19), citando Barchelard [...] antes de ser espetáculo consciente, toda paisagem é uma experiência onírica [...].

SIMMEL (1913, p.8) continua [...] a obra de arte paisagem surge como a gradual continuação e purificação do processo em que a paisagem [...] sobressai da pura impressão das coisas naturais singulares. Para ele a paisagem “nasce quando no solo, uma ampla dispersão de fenômenos naturais converge para um tipo particular de unidade” [...]. BELUZZO (1994 p.20) completa [...] a repetição de imagens semelhantes, cria o repertório necessário, a redundância capaz de gerar o lugar comum. A vista é socializada e apresenta um lugar reconhecível, e a prática colabora para a fixação de uma forma, de um modo perceptivo.

[...] A unidade que a paisagem suscita e a disposição anímica que a partir dela em nós retumba e com a qual a envolvemos, são apenas desmembramentos ulteriores de um só e mesmo ato psíquico SIMMEL (1913, p.15)
Citando Sansot (1983), BELUZZO (1994 p.20) “a paisagem é uma oferta do ser visível que se situa a meio caminho da esfera da presença e da representação”. Talvez aqui esteja o conteúdo de KANDINSKY (1996, p.43) [...] é o complexo dos efeitos organizados segundo uma finalidade interior.
Se a disposição anímica é essencial para dar unidade ao que percebemos e, segundo SIMMEL (1913, p.14), “é um estado de espírito que só habita no reflexo afetivo do observador”, então como a paisagem pode ter essa disposição? O autor explica que “disposição anímica é o elemento unitário que colora constantemente ou só no momento presente a totalidade dos seus conteúdos psíquicos singulares” [...].
BELUZZO (1994, p.195) apresenta o seguinte comentário: a visão de uma natureza universal, dinâmica e ao contrário, a natureza vista como outro ser, objeto de intervenção pela sociedade, são visões que têm origens nos povos primitivos, na Grécia Antiga, na Europa Medieval, na Europa Renascentista, entre outras (CIDADE, 2001). Ela cita Neil Smith (1988), [...] a separação analítica da sociedade e da natureza é uma consequência da lógica interna do capitalismo. Milton Santos (1996) vê na história da sociedade uma sucessão do meio natural, ao meio técnico e ao meio técnico-científico informacional, para mostrar a existência de um espaço cada vez mais artificializado.

[...] A obra de arte é concebida como um espelho mais ou menos fiel, cujo polimento talvez se permitisse certas irregularidades, inflexões pessoais, já que não se ignora o quanto cada artista constitui uma personalidade diferente, com um modo particular seu de ver e vivenciar a vida. Mas mesmo concedendo-se certas liberdades, o pressuposto é o da reprodução da natureza [...] OSTROWER (2004, p.313).
Para OSTROWER (2004, p.314), quaisquer que sejam as formas produzidas por ele (pelo artista) resultarão necessariamente num processo de distanciamento da natureza. Nesse sentido, ao formar, ao dar forma à imagem, o artista é obrigado a deformar [...] mesmo querendo inspira-se em formas da natureza, o artista as abandona para criar formas específicas, de acordo com a especificidade do material de cada linguagem.
DELEUSE (1996, p.97) citando Frances Bacon, acrescenta: Se considerarmos, com efeito, uma tela antes do trabalho do pintor, parece que todos os lugares se equivalem, são todos igualmente prováveis [...] há, portanto na tela uma ordem de probabilidades iguais e desiguais, e é quando a probabilidade desigual se torna quase uma certeza que posso começar a pintar.
SCHAWRCZ (2008 p.125) A paisagem sempre significou a natureza esteticamente processada, um instrumento cultural; ou melhor, uma forma de ver, mediada por elementos históricos, culturais e sociais [...] antes de ser repouso dos sentidos, é obra da mente. Não há olhar livre de cultura e é preciso reconhecer que nossa percepção transformadora é que estabelece a diferença entre essência (como natureza) e paisagem (como representação). [...]
ALMANDRADE (2008, p.99) “o que percebemos numa obra de arte é aquilo que recolhemos em nosso modelo de ver. O homem é inserido numa sociedade, numa linguagem, por onde aprende a ver, pensar e sentir” [...].
SIMMEL (1913 p.17) encerra o certame; “Artista é tão só aquele que realiza este ato plasmado de ver e do sentir com tal limpidez e força que absorve integralmente em si o material fornecido pela natureza e o recria como que a partir de sí”.


Referências


ALMANDRADE, pseud.. Escritos sobre arte. Salvador, 2008. 136p.
BELUSSO, Diane. 195 VISÕES DE MUNDO, VISÕES DA NATUREZA, PARADIGMAS DA GEOGRAFIA. Revista Formação, n°14 volume 1 – p. 195-197. Disponível em http://www4.fct.unesp.br/pos/geo/revista/artigos/Belusso.pdf


DELEUSE, Gilles. Francis Bacon: A lógica da Sensação. Gilles Deleuse; equipe de tradução, Roberto Machado (coordenador)... [et al]. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2007. 183p.
KANDINSKY, Wassily. Do espiritual na Arte e na pintura em particular. Tradução: Alvaro Cabral. 2ª edição. – Martins fontes. 1996. p.203-283.


Marquese, Rafael de Bivar. A paisagem da cafeicultura na crise da escravidão: as pinturas de Nicolau Facchinetti e Georg Grimm* revista do ieb fev 2007 nº 44 p. 55-76.
OSTROWER, Fayga. 1920-2001. Universo da Arte: edição comemorativa Fayga Ostrower. 24ª ed. Riode Janeiro: Elsevier, 2004. 371p.


SANTOS, Milton. A natureza do espaço. Técnica e Tempo. Razão e Emoção. São Paulo: Hucitec, 1996.
SIMMEL, Georg. A filosofia da paisagem. Tradutor: Artur Morão. Coleção Textos Clássicos de Filosofia. Universidade da Beira Interior. Corvilhã, 1913. 17p.


Obras citadas no texto
SMITH, Neil. Desenvolvimento desigual. Rio de Janeiro: Bertrand, 1988.
CIDADE, Lúcia Cony F. Visões de mundo, visões da Natureza e a formação de paradigmas geográficos. Terra Livre, São Paulo, v.17. n.2, pp. 99-118, 2001.
RIGOTTI, Paulo Roberto. Imaginário e representação na pintura de Lídia Bais. Dourados, MS: UEMS/UFGD. 2009. P.210.